Quem vê essa cabeleira cheia de cachos atualmente não deve imaginar o quanto esses fios curvos carregam uma oscilante história de aceitação capilar. Ou até imaginam, já que de uns anos pra cá, a aceitação dos mais variados tipos e formas de cabelo tem sido maior e ainda mais linda de acompanhar. Desde a década de 60, quando o Movimento Black Power mostrou-se necessário no combate ao racismo, figuras icônicas como Angela Davis e Jimi Hendrix usavam seus cabelos mais do que apenas uma característica estética, mas como uma manifestação política de aceitação e empoderamento pra conquistarmos um futuro inclusivo e, principalmente, antirracista.

As coisas andaram, a passos muito lentos, e ainda estamos caminhando, mas com o passar dos anos a indústria se viu na obrigação de trazer uma diversidade maior de produtos, que atendesse a todos os tipos de cabelo. O movimento ganhou proporção e passei a acompanhar de pertinho a transição de colegas minhas, crespas e cacheadas. Era (e é) cativante vê-las aceitando os próprios fios e se orgulhando deles. Vi nelas uma ponta de esperança, mas ainda assim, era difícil não conseguir enxergar minha própria identificação nessas personagens. Mulheres, em sua maioria, heterossexuais cisgênero. E não que suas orientações ou sexo biológico diminuam tamanha conquista, pelo contrário, torna-se admirável, pois cada um de nós passa por um processo específico e minucioso de aceitação própria. Mas nesse período notei o quanto o movimento de identificação é necessário. É sobre se enxergar. Via (e vejo) muitas meninas incríveis se encontrando em suas madeixas, mas me faltava a inspiração masculina, principalmente LGBTQIA+.

ALISADO / RASPADO

Eu era daqueles que caía constantemente naquele conflito de achar que cachos eram lindos, mas não em mim. Que cachos bonitos eram aqueles bem grossos, brilhantes e pesados, ou até mesmo os mais soltos e ondulantes. O famoso cabelo de anjinho era meu sonho, sabe? O que torna o processo ainda mais difícil, visto que, além da ditadura do liso, também havia a pressão externa e interna de me enquadrar nos cachos perfeitos. Com definição, volume e brilho. E a gente sabe que existe uma gama gigantesca de fios e beleza. Nesse processo, além de correr atrás da aceitação da minha própria imagem, queria encontrar pessoas queer que eu pudesse reconhecer meu cabelo. Afinal, como ele era? Qual era a forma? A textura? Na infância, lembro dele crespo. Era de um jeito que já não consigo recordar ao certo, talvez por não aceitá-lo da maneira como era. Via coleguinhas de classe, meninos e meninas, com madeixas impecáveis e lembro de imaginar o quão legal devia ser ter um cabelo que todes queriam ter. Naquela época, por ser uma criança inserida num contexto padronizador, ainda via o loiro e o liso como um patamar a ser alcançado.

Com essas referências eu cresci. E por não saber manusear meus próprios fios, acreditando que havia algo errado com eles, que eles jamais seria tão descolados como um topetão liso no corte undercut, quando atingi a idade ideal para fazer alisamento no cabelo, lá pelos 14 ou 15 anos, lembro o quanto fiquei feliz por aquele momento. Era a minha chance, na época, de ter o cabelo dentro dos padrões que eu queria seguir pra ser aceito. Pelos outros e por mim. Isso durou um tempo, uns dois anos mais ou menos, mas passei a nutrir outro sentimento pelo visual alisado. De questionamento da minha aparência. Aquilo não combinava comigo e eu sabia disso, mas se não fosse daquele jeito, como seria? Foi movido por um turbilhão de pensamentos que veio a vontade incessante de raspar a cabeça. Lembro que minhas referências da época eram cortes e visuais militares. Beeem padrãozinho, viu meninas?! Mas a gente cresce e muda. Ainda bem.

DESCOLORIDO / ÚLTIMA VEZ EM QUE RASPEI

Depois de alisado, foram anos e anos com o visual raspado de diversas maneiras. Batidinho dos lados e maiorzinho em cima, degradês com topete. Nada. Depois me joguei nas cores. Fui do platinado ao roxo, do roxo tentei um cinza, aí fui pro preto azulado e do preto voltei pro meu tom. Fiquei com o corte super curto até 27 de julho de 2018. A última vez que raspei meu cabelo. Decidi que era a hora de mudar. Desde então, muita coisa aconteceu. Meus fios foram crescendo e no começo, lá pra setembro daquele ano, eles não tinham uma forma exata e era aquilo que eu temia. A incerteza angustiante se aquilo era o certo ou errado, se eu gostaria do reflexo que visse no espelho. Mas eu persisti e resisti.

Ele cresceu mais e começou a ter ondas na parte de cima que passei a gostar. Ainda não era o ideal, mas diante de tantos anos frustrantes com meu cabelo, eu já estava dado por satisfeito. Achei que ele pararia por ali, que meus fios eram ondulados daquela maneira. E manter o corte da época, raspado nas laterais, estaria suficiente. Mas eu persisti e resisti. As ondinhas começaram a ir pra cima. Eu não entendia o porquê, mas procurava manter arrumado daquele jeito, porque notei que era daquela maneira que meu cabelo queria crescer. Dei espaço e tempo pra ele. Em janeiro de 2019, vi os primeiros cachos. Eles não tinham sua forma completa ainda, os fios tinham bastante frizz e outros ficavam dispersos em meio a tanto cabelo em transição, mas percebi que ali era o meu verdadeiro começo. Eles estavam desabrochando e se moldando à permissão (e à confiança) que dei pra eles.

VARIAÇÕES DO CURTO

Meses depois, os cachos estavam mais aparentes, com certo volume, mas não tanta definição. Novamente, eu achei que estava bom daquele jeito, que ele não avançaria mais. E, novamente, eu estava errado. Um dia, a convite do colorista mais incrível do Brasil (e de Paris), mon chérie, Amadeu Marins, me indicou um corte com o hair designer mais fofo e atencioso do Rio de Janeiro, Francisco Gilbert. E quando Chico colocou as mãos em meu cabelo, eu soube ali que era a cereja do bolo que faltava. Um corte que definisse ainda melhor as curvas do meu cabelo, que desse abertura pro crescimento do meu fio, e um novo penteado que permitisse minhas madeixas serem livres.

E aqui estou eu, 28 de maio de 2020, com um cabelo enorme. Também devido ao isolamento social, confesso, mas sobretudo porque agora eu o amo como ele é. Hoje enxergo meu cabelo mais que apenas parte de mim, mas como um ato político de aceitação e um gesto de muito, mas muito amor próprio. Por conseguir enxergar, em quem realmente sou, por completo, minha originalidade, meus traços, e o que me torna único e especial. Assim como você também é, do seu jeitinho, com seu cabelo da maneira que você gosta que ele seja, e com suas características que te tornam uma peça única. Elza Soares uma vez disse que "o mundo é grande demais para não sermos quem a gente é”, e é nisso que prefiro acreditar hoje. Que finalmente sou quem sou, como sou. E que, hoje, não quero que nada mais em mim mude só pra me encaixar em algo.

Eu me en(cacho) em mim.

HOJE EM DIA, ENFIM FELIZ COM MEU CABELO

—Jonas Netto @imjonasnetto