Transição. Aquele momento que divide o antes e o depois. Aquele momento em que você quer tanto chegar ao seu destino que é difícil gostar do que está no caminho. Eu vivi a transição capilar de muitas formas e, o mais importante, não foi o antes e depois do meu cabelo, mas entender quem eu sou AGORA. Porque é aqui que a magia acontece. É durante o processo que você percebe que essa é uma mudança muito mais interna do que externa. Eu, por exemplo, amava meu cabelo alisado. Gostava da minha franja, do corte, da textura. Não me dava muito trabalho: lavava 2x por semana, em 20 minutos, secava e ondulava as pontinhas. Mas transição não é só sobre cabelo. Principalmente quando você é mulher negra.

Minha vida na época do cabelo alisado era diferente. Minha atenção era toda voltada pra vida profissional e, trabalhando com marketing de moda, eu era direta e indiretamente cobrada pela minha aparência. Essa cobrança vinha de várias formas: desde pequenos elogios quando eu aparecia com o cabelo lavado, uma roupa mais caprichada, solicitações para usar roupa da marca e até mesmo usar salto alto em reuniões e ocasiões especiais. Além disso, nunca tive a facilidade de morar perto do trabalho. Morando na Zona Oeste, já cheguei a passar 5 horas por dia em transporte público. Vocês têm ideia o que é passar 1 dia inteiro da sua semana dentro de um trem? Ou seja, era uma época em que eu não tinha tempo e nem liberdade para pensar em transição capilar.

@LILIANFARRISH

Mesmo com essa correria, em setembro de 2018, eu estava há 6 meses sem alisar o cabelo e fazendo escova para igualar as texturas. Mas tinha uma viagem pra Nova York programada, e imagina se eu iria viajar com o cabelo bagunçado? Fui ao salão e fiz a raiz. Já tinha estado na cidade antes mas revisitar é sempre muito especial pra mim. Eu sou apaixonada por artes e pela cultura negra americana e, quando viajo, faço questão de ir a museus, exposições e eventos que sejam relacionados a isso. Ter o privilégio de conhecer lugares e culturas diferentes é sempre um divisor de águas na minha vida e dessa vez não foi diferente. Nessa época eu já fazia hip-hop e me sentia em casa a cada grupo de street dance que via performar nas ruas e estações de metrô, ouvindo música pop com tantas referências de mulheres negras inspiradoras, estar no MOMA e ver de perto a força de um quadro do Basquiat, foram momentos que me marcaram muito.

Na volta da viagem, minha avó faleceu e essa perda mexeu muito comigo. Me fez relembrar a trajetória do meu pai, que faleceu de câncer quando eu tinha 8 anos. Dois casos de câncer em duas gerações e eu colocando uma química no meu cabelo, sem saber se isso poderia me fazer algum mal. Além de considerar o risco a saúde, eles eram as pessoas negras da minha família mais próximas a mim, que sempre me ensinaram a amar meu cabelo natural. Então, pela minha saúde e pela minha ancestralidade, decidir não alisar mais o cabelo. Como, para a viagem, eu só tinha feito a raiz, em pouco tempo o comprimento já estava ondulando e resolvi fazer um corte pra dar movimento, com a intenção de valorizar os cachos que já estavam voltando. Fui em um salão novo e a cabeleireira detonou o meu cabelo que, além de torto, ficou muito mais curto do que eu queria. Nesse dia, eu entrei no banheiro do shopping e chorei, cheguei em casa e chorei, passei o feriado inteiro, que foram 5 dias, chorando na cama como se a maior tragédia do mundo tivesse acontecido. E o pior era eu me sentir fraca por estar tão triste por uma coisa “boba” como um cabelo que iria crescer.

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Mas eu não estava chorando “só por causa do cabelo”. Eu estava chorando por causa da minha história com o meu cabelo. Porque eu lembrava que eu amava os meus cachos quando criança. Falava pra qualquer um “não mexe no meu cabelo, se não vai tirar os cachinhos”. Eles eram a minha identidade, eram iguais ao do meu pai, a pessoa que eu mais amava no mundo. Eu estava chorando porque, na adolescência, comecei a lutar arduamente contra o volume e o frizz pra me encaixar, pra que os meninos gostassem de mim e, mesmo assim, era rejeitada. Eu estava chorando porque vi os olhares e as atitudes mudarem da água por vinho com o cabelo alisado. Os meninos começaram a se interessar por mim, mas eu estava tão traumatizada com a rejeição que não levava a sério. Comecei a ser mais elogiada pelos amigos e pela família. Comecei a ser tratada melhor nas lojas. Eu estava mais parecida com as meninas que eram referência. Foi com o cabelo alisado que, sem perceber, eu comecei a falar internamente “não mexe no meu liso, se não vai tirar minha aceitação”. Nesse momento eu percebi que a transição não era só sobre cabelo. Adotei a escova, coque e franja para encarar o dia a dia mas essa não era mais a minha grande preocupação. Eu estava focada em descobrir como eu ia encarar todos aqueles traumas novamente.

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Responder essa pergunta não foi nem um pouco fácil. Não foi da noite pro dia. Foi com muita terapia, que eu já fazia há alguns anos e tive o privilégio de continuar. Foi abrindo mão de coisas, como um emprego onde não me sentia pertencente. Também abri mão de lugares e de pessoas que me faziam mal pra me cercar só com o que me dava forças, o que se intensificou ainda mais na quarentena, onde pude ficar em casa ao lado do meu namorado e da minha mãe. Foi me conectando com a história do meu pai, que me doía muito recordar, mas que hoje tem um lugar muito mais prazeroso em mim. Ele veio de uma família muito humilde e foi a exceção da regra. Conseguiu fazer ensino superior, estava cursando sua segunda faculdade, entrou concursado para a Aeronáutica e, junto com a minha mãe, conseguiram me dar uma vida muito mais confortável do que a que eles tiveram. Ele me deixou de herança a minha cor, os meus traços, o meu cabelo e uma vida em que eu pude fazer escolhas. Foi olhando pra trás e olhando pra dentro. Foi e está sendo. Estou em transição há quase 2 anos, já vendo meus cachos voltando, curtindo as tranças, twists, finalizações, texturizações, babyliss e cortes em casa mas, o mais importante, é que eu aprendi a me curtir AGORA.

—Lilian Farrish @lilianfarrish