Desde que nascemos somos socializados no fluxo da cultura ao nosso redor. Certos costumes nem sabemos exatamente de onde vieram, embora estejam presentes em algumas das partes mais significativas da vida, como as relações afetivas românticas. Quando ainda era bem pequena, achava que se relacionar romanticamente era sinônimo de fazer parte de um casal monogâmico, composto por homem e mulher, que passam a vida inteira juntos seguindo um padrão esperado de comportamento e estilo de vida. Só mais tarde fui entender – e o aprendizado é contínuo – as múltiplas possibilidades em termos de acordos, parceiros e formas de amar.

O assunto é pauta recorrente nos meus grupos de amigos e amigas que, frequentemente, levantam alguma discussão sobre os possíveis jeitos de se envolver. Hoje vejo que não necessariamente aquela história sobre um relacionamento que durou sessenta anos é feliz. Pode ser que os envolvidos no modelo considerado "normal" não se sintam realizados ou até escondam histórias abusivas e de silenciamento. Percebi com o tempo que cada relação é diferente da outra e o sucesso de uma vida compartilhada depende de muitos fatores.

Historicamente é naturalizado que desde cedo mulheres almejem um relacionamento considerado tradicional, como se ele fosse sinônimo de completude. Os homens, por sua vez, muitas vezes não são incentivados a falar sobre seus sentimentos e emoções ou mesmo se responsabilizar pelos seus atos em relação ao cônjuge. Esses e outros fatores sociais podem gerar ruídos na hora de se envolver e levar a uma relação desonesta, independente do modelo adotado. Uma pessoa pode sofrer ghosting (quando o parceiro some sem dar explicações) tanto em um relacionamento monogâmico quanto em um poligâmico, por exemplo. Neste post, a roteirista Renata Corrêa complementa esse ponto questionando o que é, de fato, uma desconstrução.

Acredito que, seja uma relação padrão ou não, o mais importante é agir com transparência, respeito e responsabilidade. De nada adiantar embarcar em uma tendência, como por exemplo, a das relações abertas, se os termos do formato não forem conversados e os limites estabelecidos. Uma vez acertados os combinados, o amor e seus arranjos se tornam são múltiplos! – ainda bem. Cada um sabe das suas vontades e possibilidades e isso é o mais interessante. Pensando em conhecer sobre a prática de embarcar em relacionamentos considerados fora do convencional, conversei com 5 pessoas que passaram ou passam pela experiência. Algumas se mostraram positivas, outras não tanto. O que elas têm em comum? A consciência da importância da busca por autoconhecimento e saúde mental em todo o processo.

Para fins de privacidade, alguns nomes foram substituídos.

@ANNEBARLINCKHOFF

Joana, 27 anos: faz parte de um relacionamento aberto

“Tenho um formato de relacionamento aberto há 4 anos. Ficava com receio dele se apaixonar por alguém, tinha ciúmes, mas não falava sobre. Então, logo no primeiro ano da relação, tivemos uma grande conversa sobre ciúmes. E a partir dali foi um alívio pra mim, pois percebi que criamos um espaço pra conversar sobre isso de forma tranquila. Expor minhas inseguranças, sem responsabilizá-lo, mas sim abrindo um espaço de acolhimento e cuidado. O que também acontece quando ele traz seus ciúmes/inseguranças e criamos um diálogo de acolhimento e não de culpa, como acontecia nos relacionamentos monogâmicos convencionais que já vivi.

Hoje vejo, principalmente sendo um casal preto, o quanto o espaço da escuta, acolhimento, cuidado com as angústias e saúde mental é importante. Sinto que fazemos isso de uma forma muito potente. Faço terapia há pouco mais de um ano e percebo que as minhas inseguranças estão muito mais relacionadas com minha história, do que com o meu parceiro em si. E a maioria dessas inseguranças tem a ver com a hiperssexualização do meu corpo e com os padrões de beleza branco que me foram impostos durante anos.

Confesso que não sei se teria um relacionamento monogâmico convencional novamente, porque o que eu vivi dessa experiência me parece muito limitado olhando para o que vivo hoje. Mas no final das contas, acho que o ponto principal não é se é aberto ou fechado, mas se é ‘convencional’. Essa tradição que nos é imposta do amor romântico que é problemática, na minha concepção. Um amor que completa, como se não fôssemos inteiros sozinhos, isso está nas músicas, nos filmes, na literatura... Um culto às relações simbióticas, os casais não têm mais individualidade, viraram um só e chegam a um ponto de “carne e unha, alma gêmea” que confundem amor com dependência emocional.”

Alessandra, 48 anos: faz parte de um relacionamento monogâmico com o marido e decidiram não ter filhos

“Iniciamos o relacionamento bem jovens, eu com 15 anos e ele com 22. Até então não havíamos parado para tomar esse tipo de decisão, fomos aproveitando os momentos juntos. Aos 18 anos tive uma gravidez inesperada, decidimos enfrentar, porém não aconteceu como imaginávamos e perdi o bebê aos 4 meses de gestação. Depois desse ocorrido voltamos a aproveitar um ao outro, mas a família e amigos a todo momento nos cobravam um herdeiro e possível cuidador para o momento de velhice – como se esse fosse um motivo para ter um filho. Sempre tínhamos que dar desculpas pela decisão. Ora falando que ainda estava cedo, ora dizendo que tínhamos nossos projetos antes de sermos pais.

Então veio a maturidade, resolvemos por fim que seríamos somente nos dois, que aproveitaríamos nosso amor de forma mais "egoísta". O discurso não soava bem aos ouvidos dos familiares principalmente, mas com o tempo fomos mostrando que a decisão fazia sentido para nós dois. Hoje, eu com 48 e ele aos 55 anos continuamos acreditando que foi a melhor decisão. Viajamos, nos curtimos com liberdade e todos respeitam o que antes parecia loucura”.

Bruno, 34 anos: faz parte de um relacionamento poliamoroso

“No meu primeiro namoro estávamos há dois anos e meio juntos e eu fui traído. Nos gostávamos muito, então todo o processo foi muito desgastante pros dois e acabamos terminando. No meu segundo namoro, eu que acabei pisando na bola e traindo minha ex, contei pra ela e foi de novo um processo muito doloroso. A partir de tudo isso eu fui começando a pensar se não existia uma forma de me relacionar em que eu e minha parceira admitíssemos que o desejo por outras pessoas é inevitável e que era legítimo querer experimentar isso.

Comecei a namorar novamente com uma mulher que tinha esses mesmos questionamentos, começamos a ficar juntos com algumas mulheres e homens que conhecíamos. Até que conhecemos a Heloísa e ficamos cada vez mais próximos, nos vendo sempre. Hoje em dia moramos os três juntos, dormimos na mesma cama e é tudo bem conversado entre a gente, faz uns oito meses. Um poliamor seria, né? Mas a gente não rotula muito. Meus irmãos sabem e levam de boa, mas o resto da família ainda não. Acredito que minha mãe, por exemplo, teria muita dificuldade para entender, então alguns processos ainda são bem difíceis.”

Olívia, 29 anos: solteira e se envolveu com um cara que tem um relacionamento aberto com outra mulher (mas sem saber a princípio da última parte)

“Conheci o João no final do ano passado, mas demoramos até começarmos a sair juntos de fato, o Coronavírus também não ajudou. Nesse meio tempo, nos falávamos praticamente todos os dias pelo WhatsApp e, depois de meses, já estávamos com bastante intimidade. Resolvemos nos encontrar pensando em passar parte do fim de semana juntos para reduzirmos o ir e vir nesse período, coisa que normalmente eu não faria fora da pandemia, quando o deslocamento é mais fácil. A partir daí continuamos nos encontrando nesse esquema por algumas semanas, combinávamos previamente o que beberíamos e iríamos comer, então um dos dois providenciava os ingredientes e preparávamos juntos. Curtimos a casa e a companhia um do outro.

Tempos depois ele disse que tinha que conversar comigo, porque na verdade ele namorava, um namoro aberto do qual eu não fazia ideia. Sinceramente, me senti violada. Não tive direito à escolha quanto a começar um envolvimento íntimo com alguém que já namorava. Sobretudo na pandemia, enquanto eu achava que ele estava tendo contato só com os pais. Eu acho ok cada um se relacionar como achar melhor, desde que todas as partes envolvidas estejam elucidadas do que está acontecendo. Eu não estava. Ele pediu desculpas e até queria continuar me encontrando, mas sem chance. Hoje em dia me priorizo e também minha saúde mental.”

Suzana, 34 anos: faz parte de um relacionamento monogâmico com o marido, mas dormem em quartos separados

"Sempre fui da opinião de que tudo é válido em um relacionamento contanto que seja conversado e combinado. Quando Sérgio e eu resolvemos morar juntos após alguns anos de namoro, fiz questão de sentar e discutir os detalhes práticos de viver sob o mesmo teto. Definimos a divisão de tarefas, quem seria responsável por qual aspecto da casa e como usaríamos cada cômodo.Um dos pontos que levantei foi que pra mim era muito importante poder ter um espaço pra chamar de meu. Sou filha única e tive o privilégio de ter meu próprio quarto a vida toda, então sempre valorizei isso.

Gosto de ter um local pra descomprimir, ficar sozinha e também dormir só de vez em quando. Então acabamos concordando em pegar um apartamento de dois quartos com uma cama em cada um. Eu guardo minhas roupas em um e ele no outro. Mas a decoração dos dois ambientes é similar (somos minimalistas) e não consideramos que cada um tem seu quarto, mas sim que os dois quartos são do casal, nós só dividimos as atividades que fazemos neles. É ótimo. Podemos fazer sexo em qualquer cômodo, deitar para ler juntos e dormir juntos se quisermos, mas também podemos dormir separados.

Alguns amigos e familiares acharam estranho quando contamos sobre essa nossa rotina, mas depois muitos acabam admitindo que gostariam de ter um arranjo similar. É engraçado. Acho que muitas pessoas apenas seguem o que acreditam ser o formato "aceitável" das coisas e acabam perdendo a oportunidade de fazerem escolhas mais autênticas e que trarão mais felicidade."

Para mim, é importante saber que é válido questionarmos, sempre. Nenhuma evolução vem sem isso. Da mesma forma que é preciso pensar nas nossas motivações, dores e respeitar como o outro se sente. Buscar autoconhecimento e boa saúde mental são caminhos para um contato com empatia e escuta, ótima pedida para alcançar relacionamentos mais honestos e saudáveis para todos os envolvidos.

—Ana Daflon @ana.daflon