Esta história surgiu da conversa entre a editora da Shower Plant Manuela Borges e Élida Aquino em agosto de 2019. Editada e atualizada por mim, Ana Daflon, em agosto de 2020. Élida é fundadora da AfrôBox, primeiro clube brasileiro de assinaturas de produtos dedicados à pele negra e cabelos crespos ou cacheados, que desde 2016 vem traçando seu caminho no mercado de beleza. A seguir, Élida nos apresenta sua visão sobre ancestralidade, família e a busca por respostas e identidade através do empreendedorismo.

criação e família

"Não tem como contar minha história sem falar da minha ancestralidade e negritude, temas que sempre pautaram muito minha vida. Para famílias como a minha, pensando no recorte social e de raça, a ascensão vem com muito esforço. O desenho de sucesso dentro do meu núcleo em Anchieta, Rio de Janeiro, sempre foi graduar e prestar concurso público. Isso me daria um trabalho estável e linear, o segredo da realização profissional na visão dos meus parentes. Então, tudo que você pode imaginar como forma de projetar um jovem para frente – como curso de inglês, intercâmbio, priorizar o estudo e afins – minha família me proporcionou, dentro das possibilidades.

Fui a primeira pessoa da minha casa a entrar para uma universidade pública. Meu avô materno foi junto comigo para assinar os documentos de matrícula, era o quanto ele estava orgulhoso. Concluí minha formação na área de saúde em enfermagem com especialização em obstetrícia. Dentro do espaço acadêmico, sempre busquei referências negras e pude contar com o apoio de professoras negras para concluir o curso. Isso fez toda a diferença. Estruturei minha conclusão de curso também dentro de um recortede classe e raça, foi sobre mulheres gestantes puérperas (fase pós-parto) em situação de rua e usuárias de drogas. Cheguei a pensar em seguir nessa área com um mestrado, mas vivenciei um período de crise na UFRJ e depois de passar por greves consecutivas, comecei a desenvolver o desejo de empreender.

ÉLIDA AQUINO POR @HELESALOMAO

a afrôbox

Eu já conhecia referências de clubes de beleza afro nos Estados Unidos, como a Curlbox e a Naturebox e estava sempre pensando na relação da mulher negra brasileira com seu próprio cabelo. De alguma forma, sabia que queria atuar nessa esfera, unindo as duas coisas. Então, no período de instabilidade da UFRJ, resolvi aplicar para a UniCorre (centro de formação para jovens da periferia carioca) e entrei com a pré-ideia do que viria a ser a AfrôBox. Nessa época ainda não havia nome ou formato de negócio definido, mas eu já entendia que queria seguir pelo caminho do enfrentamento às minhas próprias limitações. Seria uma marca feita por mulheres negras para mulheres negras. Passei pelo projeto e defini melhor a ideia: um clube de assinatura de produtos para cabelos crespos e cacheados. Após o pitch final do projeto, que era a última etapa da formação, não consegui investimento para lançar o plano e acabei ficando desencorajada.

Passou um mês e continuei pensando naquilo, então, mesmo receosa e sem recursos, resolvi tentar pôr minha ideia em prática. Comecei o trabalho de procurar as marcas para fazer parcerias, até entrar em contato com quem viriam a ser minhas primeiras sócias. No início de 2016, trabalhamos no amadurecimento do negócio, dividimos funções e nos inscrevemos para incubações. Até que passamos pelo programa Canal Mulheres de Impacto e participamos de uma rodada de captação através da Benfeitoria em conjunto com a Think Olga, que nos ofereceu apoio e mentoria no processo. A campanha de crowdfunding deu certo e finalmente a AfrôBox Clube tinha caixa para abrir!

@AFROBOXCLUBE

Nessa época, no ano de 2016, inscrevemos a marca no Projetos de Garagem, programa da Inesplorato, uma agência de curadoria de conhecimento. Mais uma vez fomos orientadas e revisamos plano e modelo de negócios. Nossa apresentação aconteceu no IED em São Paulo e, quando descemos do palco, foi um marco na virada funcional do serviço! Pela primeira vez, nosso trabalho foi reconhecido e recebemos propostas para vender pesquisa, ou seja, conhecimento dentro do escopo do serviço que apresentamos. Fomos procuradas pelo Avon, O Boticário e Natura para realizar projetos e vários veículos de comunicação queriam escrever sobre a gente. A partir daí, passei a me dedicar inteiramente à marca.

No fim daquele ano, enviamos nossas primeiras caixas para quem tinha colaborado com o crowfunding – importante frisar que a maioria era de mulheres negras, justamente quem acreditava no projeto e queria experimentar os produtos – e os primeiros feedbacks marcaram minha vida. Percebi como aquilo tinha potencial de ser mais do que entregar produto. Virou meu mantra, em qualquer lugar que eu vou apresentar a empresa, eu falo que AfrôBox não entrega produto, entrega suporte.

primeiros desafios do empreendedorismo

A criação da minha família sempre priorizou o ensino e a conquista de um emprego que me desse estabilidade pelo resto da vida. Então, foi decepcionante para eles quando eu me formei na graduação e disse que ia abrir uma empresa. Porém, mesmo que tenha demorado um tempo para entenderem o que era um clube de assinaturas e o que eu fazia, todos acabaram me apoiando no fim. Foi um tempo difícil, tem coisa que você não consegue dividir nem com o seu melhor parceiro, a gente sofre muito sozinho, é a solidão do empreendedor. Mas eu me lembro da primeira matéria de jornal falando sobre a AfrôBox, era uma foto de duas páginas. Minha avó recortou a reportagem e emoldurou. Ali eu soube que, por um caminho ou por outro, a história da nossa família estava sendo contada. Eles foram essenciais nessa jornada, meus maiores investidores desde o início.

Passado um tempo, a parceria com uma das sócias foi desfeita, enfrentei um período muito delicado de quase quebra, somado ao falecimento da minha avó. Fiquei semanas sem abrir o computador, foi minha pior época com a empresa. Foi minha mãe que falou “você tem que voltar, as caixas estão todas aí, o que você vai fazer?”. E voltei. Por isso, para mim, transpor o desafio de empreender é provar que aquilo faz sentido para você, olhando nossos próprios exemplos de sucesso. Posso dizer que meu jogo vira quase todo dia. Sério. Todo dia na minha cabeça preciso reformular meu conceito de sucesso. Tem mês que você ganha bastante, tem mês que não vai entrar quase nada, a gente se preocupa com pagar produto, entrega, fornecedor, e nós mesmos ficamos em último lugar. Tem sido um desafio, confesso, às vezes sinto vontade de reavaliar. Mas todo dia, de alguma forma, eu me convenço de que ainda tem coisa boa para viver nisso.

@ELIDAQUINO

processo de beleza

Com três anos de idade fiz meu primeiro relaxamento no cabelo. Era um bebê. E foi assim a vida toda, característica de muitas famílias negras de se adaptar ao meio. Aos quatorze fiz a primeira escova alisadora. Foi uma alegria finalmente me enxergar como uma mulher bonita, apenas por estar com o cabelo liso. Continuei com a química até dezessete anos e passei por vários processos agressivos com o alisamento. Nisso o cabelo foi encurtando porque eu tinha que cortar cada vez mais, já que estava todo quebrado, queimado. Eu não me achava bonita no fim das contas.

Nessa época, entrou uma colega nova na escola que também era negra e tinha família do movimento ativista. Eles acabaram sendo uma grande referência para mim, e as conversas com essa menina foram quebrando o que eram até então meus ideais de beleza, gerando questionamentos e trazendo conhecimento. Em algum momento, ganhei dessa amiga a biografia do Nelson Mandela, e foi quando comecei a me perguntar “quem eu sou?” até que me ouvi falando: “eu sou filha da Márcia, irmã da Ellen, eu sou negra”. Perceber o corpo que eu habito fez total diferença, me posicionou no mundo de alguma forma. Esse foi o dia 1 da minha caminhada sobre identidade.

@ELIDAQUINO

Um dia cheguei na escola com o cabelo altamente danificado, estava quebradiço e frágil depois de tantos processos químicos. Então, na escola mesmo, com tesoura de papel, cortei meu cabelo. Foi um choque. Rapidamente fui colocar tranças no que restava dos fios e passei nove meses trocando uma trança por outra. Depois desse tempo, quando tirei as extensões, meu ele já estava grande e eu falei “é isso”. Foi aí que eu comecei a namorar meu cabelo. Entendi que o cabelo realmente é o fio condutor da mudança para mulheres negras. Essa frase de autoria da Karina Vieira eu ouvi anos atrás, e me impactou bastante. Ficou claro pra mim naquele momento que o que falta pra nós é referencial.

Precisamos oferecer apoio umas às outras, precisamos estar em rede. A afetividade e os processos de beleza são diferentes para mulheres negras e a gente precisa falar sobre isso. Eu, por exemplo, prefiro passar óleos na pele a hidratantes, para evitar aquela visão caricata de relacionar pele negra a joelhos e cotovelos ressecados. A depilação é outro ponto que também tem que passar pela visão da negritude. No preconceito, existe a relação da cor da pele com sujeira, então para uma mulher negra, a escolha sobre se depilar ou não vai ser o último degrau da libertação feminina. Para mim, celebrar e entender minha beleza através da rotina de cuidados já é uma vitória diária.

planos para o futuro

Atualmente estamos em pausa na AfrôBox, tentando a captação de investimentos para fazer uma ampliação da plataforma e trazer novidades. É complicado, sinto que as empresas ainda não investem em projetos inovadores, que foquem em combater desigualdades e quebrar padrões. Mesmo nesse momento histórico de levantes antirracistas, o foco de investimento pelos fundos e aceleradoras continuam sendo empresas fundadas por pessoas brancas, pelo que percebo.

Apesar disso, espero que em breve comece uma nova fase para nós, com a AfrôBox tendo funções além do clube de assinaturas. Se tudo der certo, acredito que nos próximos meses acontecerá o relançamento do clube, com plataforma mais tecnológica e contando com mais gente no time. Também traremos produtos e marcas novas nas próximas edições. Eu diria que os próximos passos da lista são esses: passar pela fase da captação de recursos, fazer o relançamento e expandir a abrangência do clube com uso de inteligência digital para um público ainda mais amplo."

—Élida Aquino para Shower Plant

Rio de Janeiro, setembro de 2020.