Já ouviu falar em Cottagecore? Escutei pela primeira vez na última semana, em conversa com a Manu, editora da Shower Plant e radar do nosso time para tendências mundiais. Lá fui eu me inteirar sobre o termo – cunhado por volta de 2018 e que vem ganhando força neste ano – em matéria do jornal britânico The Guardian. O Cottagecore é um movimento visual e de estilo de vida, projetado para enaltecer a pureza e saúde da vida ao ar livre, baseando-se em sustentabilidade, simplicidade, gentileza e valorização da natureza. Os praticantes imaginam o movimento como uma forma de escape das armadilhas da mídia digital e de todos os julgamentos e pontos negativos que vêm com ela. Esse estilo enaltece conexões simples que podemos ter com a vida natural, como jardinagem, interação com animais de fazenda, acesso e preparo de alimentos frescos, olhar as estrelas, estar entre árvores e dançar sob a luz do luar.

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O Cottagecore também mexe com memórias e referências afetivas. O sítio ou casa de avós, artefatos de antiguidade tipo aquele bule de chá de porcelana, o dia aproveitado na fazenda durante a infância, o primeiro contato com animais do campo, correr livremente ao ar puro. Todas essas referências habitam em lugares muito cativos no interior de cada um, remetem à família, afetos, tempos mais simples e felizes. A ideia do espaço seguro e aconchegante é, inclusive, especialmente acolhedora para aqueles que se sentem excluídos dentro da sociedade urbana - adolescentes LGBTQI+, por exemplo, estão entre os participantes mais ávidos nas comunidades online.

Insiro aqui um momento “alerta do capital”, destacando que isso tudo não é necessariamente uma novidade: a estética do movimento faz parte de uma tradição visual que se repete em ciclos quando o desgaste urbano, a industrialização e a saturação da vida cotidiana chegam ao limite e exigem mudanças. Enfrentando uma pandemia na qual a recomendação é ficar em casa, fazemos justamente o movimento de hiper valorizar momentos simples e bucólicos, afinal, não podemos deixar de falar que muitos conceitos passam pela questão do consumo e, seguindo essa linha, a escassez subiu o valor da procura.

Ainda segundo a reportagem do The Guardian, o Cottagecore surgiu através dos usuários do TikTok, o aplicativo que vem fazendo sucesso para criação de vídeos e mostra uma contradição: o crescimento da tendência está diretamente ligado a quanto o assunto vai ser mencionado nas redes sociais. Uma ironia, já que enquanto o Cottagecore pretende ignorar essas redes, depende delas para emplacar, assim como muitos atributos da nossa sociedade de consumo. O termo está a todo vapor também no Instagram e Tumblr, que registrou um aumento maciço no engajamento de conteúdos do tipo, com a quantidade de posts aumentando em 153%, as curtidas em 541% e reposts em 644% segundo matéria do Insider.

"O Cottagecore também mexe com memórias e referências afetivas. O sítio ou casa de avós, artefatos de antiguidade tipo aquele bule de chá de porcelana, o dia aproveitado na fazenda durante a infância, o primeiro contato com animais do campo, correr livremente ao ar puro. "

Em conversa com a Shower Plant, Bruna Gimba, internacionalista atuante da área de desenvolvimento urbano sustentável no Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) e no Think Tank Oxford Urbanists, contou o que acha do Cottagecore: "Acredito que essa tendência de escapismo da vida urbana está muito relacionada à uma dimensão da cidade que não podemos acessar em tempos de pandemia. A cidade, por um lado, é onde as coisas acontecem, o lugar do encontro, da vida nos espaços públicos, da concentração de manifestações culturais, das oportunidades de emprego e estudo e da diversidade de serviços. Por outro, pode ser a caótica ‘selva de pedra’, o lugar da relação predatória com a natureza e da ampliação das desigualdades. É compreensível então que haja essa onda meio ‘fugere urbem’, uma certa romantização da vida ao ar livre e próxima da natureza.

Mas acho que existe uma falsa dicotomia entre a vida urbana e a rural, porque vivemos hoje num mundo urbanizado que, mesmo o que entendemos como áreas rurais, operam em grande parte sob lógicas de desequilíbrio com a natureza. A cidade é um espelho do que se passa na sociedade como um todo, então talvez a questão deveria ser menos sobre se opor ao seu modo de vida, mas repensá-lo. Como em algum momento o distanciamento físico não será mais a realidade, essa tendência precisa ir além de um movimento estético e estilo de vida acessível e atraente apenas para as classes mais altas para, então, repensar como vivemos e pensamos nossas cidades. Seria interessante que o movimento fosse para ‘trazer o verde pra dentro’ de casa, mas também da cidade e de um novo modelo de sociedade que seja ambientalmente sustentável e socialmente justo."

"A cidade é um espelho do que se passa na sociedade como um todo, então talvez a questão deveria ser menos sobre se opor ao seu modo de vida, mas repensá-lo."
@ANTONELLAVANONI / @SUSANNEKAUFMANN_

Eu, por exemplo, sou cada vez mais sou praticante de hábitos verdes e tento me balancear no equilíbrio. Cresci em um sítio no interior do Estado do Rio, com direito a gansos, árvores no quintal e fruta colhida do pé. Depois de adulta, quando decidi me mudar para a cidade para fazer faculdade e trabalhar, fui tentando me adaptar à nova realidade. Depois de sete anos morando aqui, tento trazer a natureza para dentro com plantas em casa, comprando verduras e legumes orgânicos de pequenos produtores para cozinhar e sendo entusiasta da vida ao ar livre que a cidade do Rio tem para oferecer. Em tempos pandêmicos, retornei para a casa dos meus pais para a maior estadia desde a minha saída, de quase quatro meses de distanciamento que temos, dois eu passei lá. São incomparáveis os barulhos externos. De obra o dia todo e trânsito, passei a escutar passarinhos, grilos e cigarras. Já vinha até aquela frase tão afetiva “ih, cigarra cantando, então amanhã é dia de sol”. A vista e o humor são outros ao abrir a janela. Mas a necessidade de uma conexão estável com a internet para trabalhar, somada ao apego com meu espaço, ritmo e rotina, me fizeram voltar e estar satisfeita com isso. Sinto que respirei.

Considerando as possibilidades e limitações de cada um, é possível praticar o Cottagecore em pequenas doses de alívio e em qualquer lugar. Se apaixonar pelo sensorial se aproximar de ingredientes naturais e práticas simples de cuidado. No dia a dia, fazer um suco de frutas orgânicas que passei pelo processo de lavar, picar, espremer, coar e gelar pode transformar meu humor por uma manhã inteira. É sobre trazer a natureza e simplicidade para dentro, eu entendi, de casa e de nós.

—Ana Daflon @ana.daflon