Muito do que escrevo nasce de reflexões minhas, das que ouvi de alguém ou do resultado de uma troca de idéias. Hoje não é diferente. Desde o início da pandemia já passei por muitas das fases de amor e ódio que envolvem os exercícios físicos. Faz uns dois anos que trabalho majoritariamente de home office, então tive certa facilidade em adaptar algumas coisas da vida normal para dentro das paredes de casa, uma delas foi o exercício. Com um colchonete e alguns movimentos que eu poderia fazer sem equipamentos, comecei a suar a camisa, até mais do que eu fazia pré-Coronavírus. Foram semanas gostosas em que me equilibrei e mantive em alta minha taxa hormonal de endorfina, dopamina, serotonina e ocitocina, conhecidos como “o quarteto da felicidade” e liberados quando fazemos atividades físicas.

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No entanto, a vida, viva e cíclica que é, não mantém linearidade. Conforme os dias foram passando, meu astral mudou com eles. A falta de esperança com os desdobramentos na crise de saúde e no país minaram minha energia e, com ela, minha vontade de me mexer. Atenta para não entrar no looping da desanimação que se arrastava, me comprometi comigo mesma a continuar minha terapia online, a meditação e a comer bem – deixando claro que dentro do “comer bem” cabem desde refeições nutritivas até batata frita, pizza, bolo e sorvete. Naturalmente, meu corpo foi respondendo com uma calcinha que passou a apertar ou com o rosto se arredondando, uma das primeiras coisas que mudam quando ganho peso, nada demais. Mesmo. Mas o suficiente para que eu começasse a sentir culpa na hora do combo comfort food e séries, pacote que sempre adorei e tem sido grande aliado nos últimos meses dentro de casa. Comecei a me cobrar tanto para me exercitar, que quando eu lembrava que “tinha que fazê-lo”, parecia que a animação, inclusive para outras atividades, automaticamente entrava no modo off e eu só queria deitar.

Até que resolvi levar o impasse para meu grupo de melhores amigas, contando sobre como eu sentia um misto de culpa por estar comendo tanto, enquanto não tinha vontade ou estímulo em uma célula sequer do corpo para levantar e suar a camisa. Até que ela, minha melhor amiga que também é psicóloga – eu ouvi um amém? – falou em um áudio curto e com voz acolhedora que o que a gente precisa fazer é repensar o olhar que damos a tudo isso. Costumamos ver o exercício como uma cobrança, uma espécie de punição por ter comido demais, por aumentar medidas, gerando um ciclo de culpa e associação quase automática entre a atividade física e nossos pensamentos mais cruéis sobre nós mesmos. Enquanto isso, a gente perde a chance de olhar para essa atividade com acolhimento e bem-estar.

"Costumamos ver o exercício como uma cobrança, uma espécie de punição por ter comido demais, por aumentar medidas, gerando um ciclo de culpa e associação quase automática entre a atividade física e nossos pensamentos mais cruéis sobre nós mesmos."

Eu não mexo meu corpo para perder medidas, compensar o que comi, sobretudo no distanciamento social com toda a limitação de espaço, energia lá no pé e a cabeça pulsando preocupação com os desdobramentos. A minha melhor amiga também me lembrou isso. A origem de mexermos o nosso corpo é vê-lo em funcionamento. Um funcionamento que nos faça felizes. Não precisa ser um “treino total hit perca não sei quantas calorias em 30 minutos”, pode ser a sensação de cuidado em sentar para me alongar com calma, ver meu corpo em movimento com pequenos avanços como encostar a ponta dos dedos no chão enquanto mantenho as pernas retas. Se isso me der vontade de ligar uma música e pular corda por 10 minutos ou testar uma aula de funk no Instagram, legal, se não, tudo bem também.

Vimos tantos exemplos de corpos inalcançáveis associados a uma suposta “forma correta de ser”, sobretudo para mulheres, que passamos a agir como juízas de nós mesmas em vez de acolhedoras do que somos. Fiscais de garfo falando sobre saúde enquanto contestam corpos gordos porque não associam falta de saúde à magreza, é o que não falta por aí e isso machuca. Mas aos poucos venho descobrindo que sei mais sobre saúde do que essas pessoas, portanto, o que penso sobre mim e meu próprio corpo, vale mais, muito mais. Coisas incríveis podem acontecer quando conseguimos nos afastar dessa relação – que pode ser tão tóxica – entre comida, corpo e exercício físico.

Durante a pandemia, uma amiga sedentária assumida comprou um saco de pancadas para liberar energia, outra instalou uma barra de pole dance no meio da sala e agora se inspira em movimentos, outra vem aprendendo a tocar xequerê (ou agbê) e fala achando engraçado como os músculos do braço vêm ficando doloridos com a prática. Quando movido a amor, nosso corpo pode fazer coisas incríveis, muito mais do que quando movido à culpa e cobrança. Venho descobrindo e tentando colocar em prática esse olhar tão do bem comigo e com o mundo. Recomendo.

—Ana Daflon @ana.daflon